©CAROLINA KASTING, Sacrifício, 2023, da série “Genealogia do Sacrifício”, foto performance, pigmento mineral sobre papel Hahnemühle Photo Rag 308, 1/5 110x165cm

A série Genealogia do Sacrifício em mídia fotográfica, áudio-visual e objeto-instalação. Realizada em maio de 2023, partiu da ideia de tecer um manto, ainda no Brasil e levá-lo para Portugal. Em território português, realizei duas performances, Sacrifício e Reverso do Sacrifício. Manto-corpo e Corpo-artista deram início ao movimento anticolonial da série, ao se deslocarem em trajetória rever- sa às caravelas colonizadoras. No encontro inesperado com o barro e a pedra sacrificial, a interseccionalidade dos corpos promoveu a reelaboração do significante mulher, branca, não europeia e latino-americana, objetificada e colocada em sacrifício como tecnologia de opressão patriarcal. A performance pretende borrar as fronteiras dos corpos, animal carneiro, barro vermelho da cor da pele dos povos originários da Pindorama, e corpo-mulher em ação contracolonial.

©CAROLINA KASTING, Reverso do Sacrifício, 2023, da série “Genealogia do Sacrifício”, foto performance, pigmento mineral sobre papel Hahnemühle Photo Rag 308, 1/5 30x50cm

Genealogia do Sacrifício

©CAROLINA KASTING, Sacrifício, Manto-corpo no Matadouro, 2023, da série “Genealogia do Sacrifício”, fotografia contemporânea, pigmento mineral sobre papel Hahnemühle Photo Rag 308, 110x74cm 1/5

©CAROLINA KASTING, Sacrifício, Manto-corpo, Crucificado, 2023, da série “Genealogia do Sacrifício”, fotografia contemporânea, pigmento mineral sobre papel Hahnemühle Photo Rag 308, 110x78cm 1/5

[ Detalhe ]

©CAROLINA KASTING, Carrego a Casa Comigo, 2024, video performance,1:39, projeção 30x21cm, fotografia contemporânea,1/15, pigmento vegetal sobre papel 100% algodão, 30x21cm, pintura com objeto orgânico, serigráfica sobre papel 100% algodão 290gr, objeto orgânico concha de caramujo catada 7x5x- 4cm e poema impresso, impressão jetset em papel 100% algodão 290gr

A série Carrego a Casa Comigo é composta por fotografia, vídeo performance, pintura e objeto orgânico, e poema. Os diferentes suportes se complementam. A realização do vídeo deu inicio a ação que gerou a imagem fotográfica e a pintura, que é vestígio do gesto. O objeto Caramujo foi acoplado posteriormente para fechar o ciclo com o poema homônimo. A palavra está no movimento, no que resta dele e na imagem do gesto, tem na escrita do poema, seu princípio e fim.

A língua como representação da linguagem, da cultura proibida às mulheres, de suas falas que foram silenciadas, que nunca tiveram espaço na polis (públi- co, político) com sua produção de pensamento e narrativas. Ás mulheres era dado o oikos (privado), a casa, onde viveram escravizadas, com seus corpos em trabalho reprodutivo e de cuidado. O órgão língua, na pintura usado como pincel, deixa um rastro vermelho que remete ao sangue orgânico de seus corpos e ao lastro que o caramujo deixa com sua viscosidade. A casa como proteção e fardo, carregado pelas mulheres, único lugar de existência para elas, idealizado como proteção, na praxis uma prisão.

Carrego a Casa Comigo reflete sobre a significação do corpo, da casa e da natureza, quebrando a tríade formadora do conceito universal de mulher e arrastando-a para uma autonarrativa sobre violência e ressignificação poética.

Era uma vez, um caramujo, ele era um pouco como os casulos, embora conseguisse se movimentar, movimentos internos eram de maior conforto para ele, quando saía, precisava logo voltar. Em determinado momento de sua vida, ainda muito jovem, perce- beu que, se não fosse embora do lugar onde se entendeu um ser, secaria e morreria, não conseguiria se tornar algo que ele ainda nem sabia o que era. Sabia que precisava ir, então, foi embora.

Como todo caramujo acreditou que sua carcaça o protegeria. Não era capaz, ainda, de dimensionar os horrores do mundo. Ele via no mundo, enquanto jovem, a possibili- dade de sobreviver, mesmo sendo um caramujo e tendo sua casa dentro de si. O des- locamento promoveu os encontros, os acontecimentos. Quem se movimenta provoca o movimento dos outros, muitas vezes, de aproximação, outras de repulsa, de olhar, de curiosidade, de aversão. O caramujo percebeu que alguns movimentos eram ruins, vio- lentos, de formas diferentes, poucas vezes foi claramente chutado para fora, na maioria das vezes, era levado para dentro e lá, exerciam sobre ele uma perversa prática de desapropriação. Sugavam sua segurança, invejavam sua juventude, enfiavam o dedo em sua íntima carcaça, era indescritivelmente doloroso. Passou por muitas situações desde que saiu de casa, e não tinha meios de se defender. Entendeu, enfim, que sua carcaça não o protegia, pelo contrário, ela parecia chamar mais a atenção de figuras parasitas que se utilizam da vontade de potência de seres belos, como o caramujo, para manter uma sobrevida, que de vida, não tem mais nada, são figuras de morte. Figuras que, se eliminadas as fontes de onde sugam a seiva, morrem, porque não têm nada por dentro. São zumbis antropofágicos.

O caramujo foi vítima dessas criaturas durante toda sua juventude. Não se apercebia disso, para ele, o problema estava consigo, ele era culpado por ser um caramujo e ter uma carcaça, não era forte o suficiente, pensava. E depois, não sabia fazer os movi- mentos sedutores das borboletas, que pareciam não ter substância alguma mas conse- guiam o reconhecimento. Ele se sentia sem graça, inadequado, estranho, estrangeiro por levar sua casa/pele consigo. Ele era a carne que habitava sua pele, e os outros não gostavam disso.

Toda vez que mostrava um pouco do que tinha por dentro, os outros iam embora, assustados ou indiferentes. Demorou para perceber que os outros não eram bons para com ele, que o mundo era um lugar terrível. Mesmo que ainda se sentisse culpado, começou a diferenciar-se, intimamente, aceitou quem era e continuou a se movimentar. Era preciso viver.

Lá em seu íntimo, surgiu uma semente. Da violência que vivia, uma forma de delica- deza nasceu. No princípio, imperceptível, mas ela foi criando forma e se fortalecendo, sentia força para dizer não, sair de lugares onde não lhe queriam bem. O poder de escolha surgia, e sua carcaça ficando mais bela, forte.

Até que um dia, ele mudou, entendeu que queria criar mundos a partir de si. Os tentáculos começaram a forçar a carcaça, ele começou a se abrir e coisas lindas saíram de dentro dele. O mundo dos outros passou a não ter mais importância, ele se projetava nos espaços e neles passou a existir. Seus tentáculos eram como rios e raizes que se expandiam e criavam novos ramos. O caramujo se fez em fluxos de mov- imentos férteis. Não se tornou uma borboleta fugaz, como as outras, tornou-se árvore, rio e mar.

Agora amadurecido, se tornou o ser que sempre tinha sido. Dele nasceu um mundo único, que transforma. Alguns não se transformam com ele, não se deixam tocar, mas não tem problema, o que importa é que caramujos são como núcleos de potência e vida, por isto, precisam se conter para depois se expan caramujo se tornou minimamente gigante em si, um universo.

Caramujo Poema-conto
Carrego a Casa Comigo

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